Um Lorde do Passado - cena deletada
A CENA ACONTECE EM UM MOMENTO NÃO DETERMINADO DO LIVRO. FOI RETIRADA E É NARRADA PELO PONTO DE VISTA DE THEOBALD LANDON.
Hoje vamos jantar fora. Não entendo esse conceito até Murilo me explicar que significa sair de casa para comer. Ainda não faz muito sentido para mim.
— Temos uma mesa no quintal. É mais ou menos isso que faremos? — pergunto, enquanto reviro as roupas que Lady Flávia me comprou. Entendo que é um evento para o qual devo vestir mais do que calções.
— Não, nós vamos a um restaurante. Há restaurantes em sua época, não há?
O menino está jogado sobre a minha cama enquanto mexe no objeto chamado celular.
— Sim, há. Mas os jantares mais sofisticados acontecem nas grandes mansões, durante eventos da aristocracia.
— Acho que você vai achar o Panela de Barro um lugar bem diferente disso. — Murilo se levanta e pega uma camisa de botões que ainda não usei. Acabei me habituando a roupas menos elegantes e mais frescas porque essa cidade é quente como as labaredas do inferno. — Coloque essa. Mamãe adora verde.
— E por que eu devo me vestir com as cores que sua mãe gosta?
— Para agradá-la? — Ele continua remexendo nas roupas na intenção de me ajudar. — Você gosta da minha mãe, não gosta?
Tudo bem, essa é uma conversa que eu não sei se devo ter com o filho de Flávia. Ela não pareceu preocupada enquanto cochilava na minha cama, porém não sei mesmo os limites nesse lugar onde tudo parece permitido e não existe qualquer decoro ou decência.
— Sua mãe é uma mulher impressionante. — É minha resposta neutra.
— Certo, então gosta. — Murilo joga uma peça de roupa sobre mim. — Essa bermuda combina. Se quiser, pode pegar meus chinelos de sair.
Visto as roupas que ele escolheu e confirmo que são elegantes. Ao menos em se considerando a elegância que é possível ter quando o ambiente está a quarenta graus de temperatura.
— Por que você acha que gosto de sua mãe, Murilo?
— Ah, essa é fácil. Você olha para ela igual eu olho para Luiza.
Ele logo percebe que falou demais e baixa os olhos para o chão enquanto finge mexer no celular. Coloco uma mão em seu ombro e suspiro. Não sei nem consolar, nem dizer coisas sábias que ofereçam conforto as pessoas.
— Luiza é a jovem que virá hoje, aqui? É por isso que não vai conosco e está usando perfume?
— Ela é muito legal. — Ele balança a cabeça, como se a ideia de gostar de uma garota fosse ridícula. — E gosta de videogame, sabe?
Talvez eu saiba. Sempre quis encontrar uma mulher com quem pudesse compartilhar hobbies e outras atividades, mas também sempre entendi que os objetivos femininos em um casamento são muito diferentes dos meus. Elas querem filhos, uma casa grande para comandar, vestidos e eventos.
E eu não faço a menor ideia do que quero.
— Incomoda você que eu ache a sua mãe “muito legal”?
Preciso saber se o menino aprova meu envolvimento com Flávia. Mesmo que não vá durar mais do que algumas semanas além de hoje, sinto necessidade de obter a sua aprovação. Quero que ele continue conversando comigo porque prezo a sua companhia.
— Mamãe está feliz — Murilo dispara, quase me atingindo com sua afirmação. — Ela gosta de você, também. Só tente não magoá-la, ou eu terei que chutar seu traseiro real para fora dessa casa.
A forma séria e determinada com que ele diz isso me faz rir. Perco a compostura e abraço o menino, dando dois tapinhas em suas costas. Ele faz uma careta e sai do quarto no instante em que toca o sinete da porta.
Olho-me no espelho e confirmo que estou apresentável. Tomei banho, penteei os cabelos, estou vestido com roupas limpas e com um aroma agradável. Os tais chinelos combinam com o restante. Passo as mãos pelo queixo e não sinto nenhuma irregularidade. Nenhum ferimento causado pelo uso incorreto da navalha.
Wilkes teria orgulho de mim. Ele tentou por anos me ensinar a barbear, mas eu era preguiçoso demais para aprender.
Encontro Lady Flávia na sala e paraliso no meio da escada. Ela prendeu os cabelos de uma forma que eles formam um amontoado harmonioso sobre sua cabeça. Alguns fios avermelhados e rebeldes caem pela lateral de seu rosto. Seus lábios estão pintados de um tom terroso e ela está usando um vestido.
Não é como os vestidos das damas de Londres, porém esse cabe nela perfeitamente e a envolve em azul real. O decote deixa minha parte favorita do seu corpo exposta e seus pés estão adornados por sandálias com brilho. Ela é a mulher mais bonita que já vi e eu realmente estou a alguns passos de perder a compostura.
Porque eu quero apenas segurá-la nos braços e beijá-la e dizer isso. Que ela é linda.
Nada disso acontece. Seguro seus dedos entre os meus e beijo-lhe os nós, demorando-me um pouco demais para sentir a maciez de sua mão e o cheiro de sua colônia. Ayla está com uma roupa cor-de-rosa e tia Nancy parece uma das matronas que passam o baile inteiro querendo casar as pobres jovens solteironas.
— Espero que você goste de frutos do mar — Flávia diz. Estamos rodando pelas ruas da cidade, que parece bem agitada e movimentada. Talvez eu deva fazer um passeio por ela para que tudo do futuro que conheci não se resuma à casa de minha anfitriã. — Porque tia Nancy certamente vai querer comer camarão.
Estacionamos na frente de um lugar iluminado. Saio do carro e abro a porta para que a tia possa sair.
— Aquele espaguete! — Lady Nancy se pendura em meu braço. — Mas peçam o que quiserem, hoje tudo será por minha conta.
Sentamo-nos em uma mesa simples e todo o ambiente é bonito, porém muito diferente da pompa da nobreza britânica. Música flutua pelo ar e há um homem com um instrumento cantarolando uma canção melodiosa. As pessoas riem e falam alto.
Nunca mais tive dores de cabeça. Nem quando corri, nem quando fiquei sem comer, nem quando precisei passar muitas horas cuidando de Flávia, nem durante todos os minutos que passo dentro da casa mais barulhenta que existe. Talvez 2023 tenha curado a minha enxaqueca.
— No que está pensando? — Flávia me encara com dúvida. Minha introspecção costuma durar muitos minutos. Estive tão absorto que até um copo de bebida colorida apareceu à minha frente.
— Que nunca mais tive uma dor de cabeça — confesso. Meus dedos procuram os dela e os entrelaçam. Céus, eu não posso fazer isso.
— Sente saudades de casa, não é?
Olho ao redor. Eu mal pensei em casa durante todos esses dias em que estive aqui. O início foi difícil, mas a aceitação veio com um amortecimento da parte que estava desesperada para voltar. Estou tranquilo e isso pode significar tantas coisas que nem sei por onde começar a analisá-las.
— Eu tenho um amigo. Conde de Blackwell. Ele é casado com minha irmã.
— Você acha que esse amigo está cuidando da sua família?
Assinto. Ele jamais deixaria meus irmãos desamparados.
— O que é isso? — Mudo de assunto porque não quero me lamentar.
— Capirinha. A daqui é a melhor de todas, então pedi uma para você provar.
Bebo um gole do drinque de aparência festiva e quase engasgo. Ele é azedo e doce ao mesmo tempo. Gelado e muito saboroso, além do teor alcóolico elevado. Lady Nancy também está bebendo um igual e ela me olha como se quisesse me dizer algo, mas não pudesse.
Depois que comemos — um prato exótico com camarão, algo que nunca experimentei —, não demoramos a voltar para casa porque a bebê precisa dormir. É uma refeição rápida, porém repleta de conversa. Como são todas as feitas na casa de Flávia.
A senhora se despede, ainda com os olhares cujo significado não sei, e se fecha em seu quarto. O quarto de Murilo está sobrecarregado por adolescentes que gritam na frente de uma televisão. E eu estou definitivamente corajoso depois de ter provado a tal caipirinha.
— Vou dar banho e colocar Ayla na cama. — Flávia me distrai dos meus muitos pensamentos. — Ela ficará no meu quarto, hoje. Você pretende dormir agora?
— Não, milady. Eu pretendo esperá-la.
Um sorriso acende seus lábios coloridos. Ela fica na ponta dos pés e deposita um beijo casto em minha boca antes de desaparecer. Sento-me em minha cama e olho para minhas mãos. Trêmulas. Não posso estar nervoso. Nunca fico nervoso, ainda mais diante de uma mulher.
Mas ela não é qualquer mulher. Essa é uma líder. Uma comandante. A mulher que cria uma família linda e amorosa e não eleva o tom de voz. Flávia não perde a linha, não se abala e não demonstra qualquer fraqueza. Ainda assim, ela é solitária e se mantém forte porque acredita que tudo entrará em colapso caso ela não sustente o mundo sobre as costas.
Eu sou esse homem — o que carrega todo o fardo sem compartilhar com ninguém. Porém eu estou longe de ter a elegância e o carisma dessa mulher.
Pois hoje ela será minha.
Que se dane o universo inteiro.