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Literalmente falando

Foto do escritor: Tatiana MaretoTatiana Mareto

É carnaval, mas o mercado literário não parou. As redes sociais continuaram repletas de confusões provocadas por quem não curte outras folias ou prefere tretar, mesmo. 


A newsletter da quinzena, vindo com um dia de atraso, não vai explorar todas elas. Hoje eu me lembrei de uma conversa com duas amigas sobre arte e interpretação. Em algum lugar da grande rede das fotos, alguém postou sobre como seria uma leitura racional de Rapunzel e a pergunta que ficou no ar foi: por que raios alguém faria uma leitura "racional" de um conto de fadas? 


Os contos de fadas não surgiram com a Disney. 



O que hoje nós conhecemos como contos de fadas surgiram há muitos séculos. São histórias originarias da cultura europeia que eram contadas geralmente para crianças, muitas delas perturbadoras. Há contos de fadas tomados por escrito em coletâneas italianas do século XVI, na obra de Charles Perrault do século XVII e os mais famosos vêm dos livros dos irmãos Grimm. 


Os irmãos Grimm transcreveram as histórias de narrativas orais e tiveram seus contos adaptados mundialmente, contando com diversas variações. Uma coisa que os contos de fadas têm em comum, no entanto, é a ausência de literalidade. Todos eles são histórias com uma carga metafórica potente, que requer uma leitura atenta e permite múltiplas interpretações. 


Uma "leitura racional" tira dos contos de fadas toda potência de suas camadas de texto e subtexto. Não dá para interpretar literalmente a Bela Adormecida. Não dá para ter uma compreensão literal de Chapeuzinho Vermelho. Os contos de fadas possuem muitas histórias por trás da história, que se perdem se buscamos aproximá-las excessivamente da realidade. 


A leitura concreta, literal, aprisiona a experiência - Karina Heid

Mas isso não acontece apenas com os contos de fadas. Toda história de ficção, seja ela de qual gênero for, usa figuras de linguagem e subtexto para contar histórias além das histórias. 


Em A Crise da Narração, Byung Chul disserta sobre uma crise interpretativa e narrativa que, em uma tentativa de se aproximar o máximo possível da materialidade, possuem uma alta dose de literalidade e um excesso de informação que matam o sentido e o significado do próprio texto. A narração se perde no infodumping porque não se consegue mais compreender o que está dito sem ser dito.


A informação é aditiva e cumulativa. Ela não é portadora de sentido, enquanto a narração, por sua vez, transporta o sentido. Originariamente, sentido significa direção. Estamos hoje, portanto, muito bem-informados, mas desorientados. - Han, Byung-Chul. A crise da narração (Portuguese Edition) (p. 10). (Function). Kindle Edition.

Vocês já devem ter ouvido por aí que a pior crise que vivemos atualmente é de interpretação de texto. Leitoras buscam histórias cada vez menos poéticas, com cada vez menos subtexto e com tanta explicação (excesso de informação) que o próprio sentido da história se perde em uma narrativa empobrecida e despida de metáforas. Sem metáforas, a história perde subjetividade e contexto e se torna um mero produto informativo, que não possui nem provoca sentidos.


Se não há mais poesia, arte nem metáforas em uma história, o que ela é senão um texto mecânico que poderia ter sido escrito por uma máquina?


Quando vejo as inteligências artificiais substituindo autoras, escrevendo livros com milhares de leituras na Amazon, contando histórias (?) que se confundem com histórias escritas por pessoas, eu vejo o quanto o excesso de literalidade prejudica a arte de escrever. Uma máquina, seja ela virtual ou não, não possui subjetividade. O subjetivo é do sujeito e só o sujeito "conta histórias". Só o sujeito narra. A máquina repete, reproduz, mas não cria.


Se entregamos excesso de materialidade e nenhuma metáfora, nenhum subtexto, nenhum mistério escondido no meio das frases, não somos diferente das máquinas. Se não entregamos beleza, poesia; se não usamos palavras que não combinam e mudamos a ordem das frases, não somos diferentes das máquinas. A organização das palavras em um texto não é apenas um ato lógico, é também um manifesto artístico.


Nosso dom é a palavra e como conseguimos, com ela, transformar e moldar ideias, textos e contextos. Em como nos expressamos para dizer aquilo que qualquer pessoa poderia dizer, então o que nos diferencia é a forma. É o como.

"São as palavras, as construções frasais, a pontuação, as hesitações, as dúvidas — enfim, a linguagem literária — que vão conduzir a ideia a novas conformações." - Noemi Jaffe

Uma história sem subtexto, sem subjetividade, pode ser escrita por uma máquina. Ao olhar para seu texto, pergunte a si mesma: ele poderia ter sido escrito pelo ChatGPT?

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Tatiana Mareto @ 2020 - Todos os direitos reservados.

 

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